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Sonia Guedes

Sonia de Oliveira Guedes de Souza acompanhou o movimento operário que deu origem ao PT, em S. Bernardo do Campo. Durante o regime militar, foi interrogada sobre as atividades do GTC (Grupo Teatro da Cidade de Santo André). Nesse período, o GTC sofreu intervenção da censura federal, que proibiu a montagem e apresentação da peça Heroíca Pancada, de Carlos Queiroz Teles. Participou do Festival Sul-americano de teatro em Manizales, como chefe da delegação brasileira. Em 2004, completou 50 anos de teatro. Participou da Sociedade de Cultura Artística de Santo André, de 1954 a 1964. Foi uma das fundadoras do CPC (Centro Popular de Cultura) do Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André. Com Antônio Chiarelli, participou do movimento para construção do Teatro Municipal de Santo André.

Com Antônio Petrin e Heleny Guariba fundou o GTC. Foi produtora e atriz da Guerra do Cansa Cavalos, peça apresentada na inauguração do Teatro Municipal de Santo André.  

Trabalhou durante 14 anos no teatro amador da região (1954 - 1968), foi a primeira atriz da região a se formar pela EAD e a receber o prêmio Governador do Estado e a medalha de ouro como cantora.

Recebeu muitos prêmios por sua atuação no teatro e participou de várias novelas e minisséries na TV. Atuou no filme A hora da estrela, dirigido por Suzana Amaral.

 

 

Imagem do Depoente
Nome:Sonia Guedes
Nascimento:22/11/1932
Óbito:03/06/2019
Gênero:Feminino
Profissão:atriz
Nacionalidade:Brasil
Naturalidade:Paranapiacaba (SP)

Arquivos de Imagem

Sonia Guedes_I001

Vestido de noiva Sonia Guedes, São Paulo, 1960
Sonia Guedes_I002

Modelo usa vestido de noiva de Sonia Guedes, São Paulo, 1960


Transcrição do depoimento de Sônia Guedes em 10/07/2003

IMES – Centro Universitário Municipal de São Caetano do Sul

Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa



Projeto Memórias do ABC



Depoimento de Sônia de Oliveira Guedes de Souza, 70 anos.

IMES – Centro Universitário de São Caetano do Sul, 10 de julho de 2003.

Entrevistadores: Priscila F. Perazzo e Daniela Macedo da Silva.



Pergunta:

A senhora pode começar contando um pouco da sua infância na cidade Paranapiacaba.


Resposta:

A minha infância foi muito agradável, porque eu nasci em Paranapiacaba, Alto da Serra, que foi tombada agora, felizmente. E eu tive uma infância muito feliz, tinha amigas inglesas, minha mãe e minhas tias eram empregadas domésticas dos ingleses, eu fui criada junto com essas crianças, aprendi a falar alguma coisa em inglês, elas falavam português, mas algumas canções eu aprendi em inglês. E herdava junto com algumas roupas, livros, lápis de cor, álbuns, então foi muito gostosa. Eu tive acesso, porque no meu tempo as crianças não tinham tanto acesso a tudo isso que eu acabei de falar, eu tive uma infância completa, porque freqüentava a escola que tinha uma grande biblioteca que tinha sido construída pelos ingleses, o Grupo Escolar de Paranapiacaba, que tinha uma biblioteca modelo, muito grande e muito bem cuidada. Era uma honra, você entrava no primário e ia até o quarto ano, depois fazia o ginásio mais quatro anos, não era de primeira a oitava série como é hoje. E quando nós estávamos na quarta série, nós éramos bibliotecárias, você se candidatava e era convidada a ser bibliotecária, o que era uma grande honra. E eu fui criada no meio dessa biblioteca maravilhosa. Eu tive uma doença, não era bem uma doença, tive um defeito físico e fiquei impossibilitada de andar por muito tempo, então quando eu ficava engessada, quando fazia alguma cirurgia e ficava meses sem poder andar, a diretoria da escola facilitava que as meninas da quarta série, as bibliotecárias, fossem levar livros até minha casa, tanto que eu li a biblioteca toda – até os quinze anos eu já tinha lido os três mil volumes da biblioteca, então eu não fazia outra coisa, porque eu não podia sair da cama. Claro que os mais difíceis, aquela parte toda pedagógica, eu não lia tudo, não entendia, mas desses três mil, pelo menos mais da metade eu li mesmo. Eu lia um livro por dia, às vezes dois livros em um dia, desenvolvi uma capacidade de leitura muito rápida, o que me ajudou na vida depois quando eu estudei, quando passei... Então eu vivi nessa cidadezinha até os catorze anos, quando meu pai se aposentou, e nós mudamos para Santo André.

Também queria lembrar que esse tempo em Paranapiacaba tinha duas salas de cinema, uma ao lado do morro que não era da São Paulo Highway Company, que agora acho que é Santos–Jundiaí, ou nem sei como é, acho que é Rede Ferroviária Federal, e outro cinema que era encostado na escola que era assim como um centro cultural que eles construíram; tinha o cinema, o clube, uma sala de jogos e uma sala de cinema que também servia para baile, e o grupo escolar encostado com essa biblioteca. Esse cinema chamava Lira Serrana e tinha do outro lado A Flor da Serra. Minha paixão era o cinema, mais do que a leitura, e como eu era muito mimada porque era filha única e tinha esse problema todo, meus pais tentavam me dar o máximo dentro das possibilidades deles, que eram muito pobres, meu pai era ferroviário, minha mãe era lavadeira, então era dentro das possibilidades que eles me deram o máximo. Por exemplo, naquele tempo era muito raro mas eu lia uma revista por semana, meu pai se empenhava em comprar uma revista para eu não ficar ausente do mundo, enfiada naquela cama e naquele quarto, então eu recebia uma revista por semana. Quando eu terminava de ler aquela revista, eu ficava atormentando: Terminei! Terminei! Essas revistas vinham de trem, meu pai esperava quando o trem passava para Santos, pois vinha o jornaleiro vendendo revista. E ele passou a me comprar uma revista espanhola que chamava Para ti, porque a brasileira era O Cruzeiro e eu já tinha lido, e eu aprendi castelhano sozinha, por ler as revistas e ir comparando-as, pelo sentido eu fui aprendendo; muitas palavras eu não sabia o que era, mas quando eu via repetida numa outra frase, eu voltava e falava: Ah! Quer dizer isso! E marcava. E assim eu aprendi castelhano com dez, doze anos. Não falava, mas lia bem. E então era assim. Quando eu andava, na segunda-feira eu ia na Flor da Serra, na terça-feira ia na Lira Serrana. Os filmes passavam dois dias apenas. Então na quarta-feira eu voltava ao cinema que eu tinha ido na segunda, porque já era outro filme; na quinta-feira eu ia ao outro; e na sexta-feira eu voltava ao outro; e no domingo eu repetia o que eu tinha visto no sábado ou na sexta – o que eu gostava mais, de modo que eu ia ao cinema todos os dias. Eu fiz isso e foi muito interessante porque quando cheguei na escola de arte dramática, muitos anos depois, todas as peças que o Dr. Alfredo me explicava ou ia discutir, eu dizia: Ah! Eu sei! Foi tal ator, tal atriz, tal diretor. Ele falava assim: Você viu tudo? Eu falava: Não! Eu nunca vi nada, eu só li as críticas. Eu conheci o teatro pelas críticas. Eu não sabia nada, tudo que sabia de teatro era por ter lido. Como você pode conhecer teatro sem assistir teatro?! Eu não tinha assistido. Ele ficava impressionado com a minha capacidade de memória, mas era porque eu só fazia isso, eu me especializei na leitura e nos filmes. Os filmes também eu via a todos, os proibidos, os não-proibidos. As professores perguntavam: O que você foi ver ontem? Não pode! Isso é filme proibido! Ah! Eu já vi! (risos) Eu não sabia o que que era filme proibido ou não, não tinha censura, não funcionava. Foi uma infância muitíssimo feliz.

Com 14 anos eu passei para Santo André, onde eu fiz primeiro o ginásio em Santo André, dois anos, e depois abriu o Américo Brasiliense e eu fui para o Américo Brasiliense, mas eu não sou da primeira turma, quando eu entrei no Américo Brasiliense, eu entrei já no terceiro ano, eu fui da segunda turma. Eles fizeram uma classe de quarto ano ginasial na ocasião e no outro ano é que foram todos os formandos. Eu sou da segunda turma do Américo Brasiliense. Depois eu fui para São Paulo fazer escola normal e fazer arte dramática etc.

Também me considero muito afortunada porque eu tive muita ajuda. Não são todas as crianças que nascem em lares assim tão pobres que têm acesso a tanta informação – isso é uma maravilha – e tive ajuda das pessoas. Todas as pessoas me ajudavam quando eu não podia andar, as meninas levavam os livros, as pessoas ajudavam a me carregar, porque com catorze anos eu não andava, não tinha carro, não tinha automóvel na cidade, a cidade dependia dos trens, e meu pai me carregava no colo até a estrada de ferro para me pôr no trem para fazer o tratamento ortopédico em São Paulo. Quando chegava em São Paulo, a gente não tinha dinheiro para táxi, a gente ia de bonde, minha mãe me carregava no bonde no colo e sempre nós tivemos muita ajuda, sempre as pessoas ajudaram a me carregar. O interessante é que muitos anos depois a história se repetiu porque minha filha também nasceu com o mesmo problema e eu continuei a receber essa ajuda. Eu me considero uma pessoa afortunada, acho que isso é uma glória, você ter ajuda das pessoas, sem nenhum interesse, por bondade, por amizade, e às vezes nem amizade era, pessoas que às vezes a gente não conhecia. Elas falavam assim: Quer que eu te ajude a carregá-la no colo? Isso é muito raro hoje em dia! Mas hoje também como existe mais facilidade de condução, então não seria tão necessário, mas eu acho que essa infância com tanta dificuldade, a minha por causa da doença, mas mesmo os que não eram doentes, eu acho que as pessoas eram mais solidárias, antigamente as pessoas não se fechavam em casa, não se fechavam e viam televisão, as pessoas conversavam. Havia muita fofoca no meio, claro, mas também havia muita solidariedade. De uma coisa eu sinto falta na sociedade de hoje: é a solidariedade. Às vezes eu me prontifico a ajudar alguma pessoa, as pessoas me olham até estranhamente, parecem que eles falam: O que será que essa mulher quer? Quer ajuda? Eu sou acostumada com isso, porque foi assim que eu fui criada, e isso depois se repetiu com a minha filha, também tive diversas pessoas para cuidar da minha filha, que também ficou bem. Esse tipo de defeito físico precisa ser tratado muito cedo e depois com treze ou quatorze anos você já vence o problema e sai andando, não tem retrocesso felizmente. Eu fui para São Paulo e fiz a escola de arte dramática. Mas o que eu queria voltar, ao lembrar da ajuda, é que a Prefeitura de Santo André me deu uma bolsa de estudos para fazer canto e piano no Conservatório que era pago naquele tempo e eu era bolsista da Prefeitura de Santo André, pela Secretaria da Cultura. Sou muito grata. É bom lembrar, deixar aqui para a posteridade, que eu estudei canto e piano pela Secretaria de Cultura da Prefeitura de Santo André. E depois quando eu fiz a escola de arte dramática eu tive bolsa do Governado do Estado de São Paulo, era uma ajuda pequena, mas foi de grande valia para mim. Acabei a parte de agradecimentos [risos]


Pergunta:

E por qual motivo a senhora recebeu esse auxílio da Secretaria? A senhora pleiteou uma bolsa?


Resposta:

Em Santo André eu pleitei a bolsa. Eles davam algumas bolsas dependendo das condições da família, do que você ganhava, você recebia a bolsa. A de São Paulo, eu ganhei num concurso, ganhei um prêmio num festival de teatro, primeiro festival de teatro amador do Estado de São Paulo, eu ganhei o prêmio de melhor atriz e o prêmio era uma bolsa numa escola de arte dramática. Então era um curso longo, eu fiz três anos, equivalente a faculdade. Se bem que apesar de pertencer agora a USP, é um curso técnico da USP. A escola de arte dramática não é universidade. A ECA é, mas a escola de arte dramática não. Até estava contando para as meninas que no ano passado me inscrevi na faculdade e estou freqüentando agora com setenta anos a faculdade, porque eu não tenho diploma universitário. Tenho muita prática mesmo, a escola de arte dramática é nível técnico, a escola normal não é faculdade também, o conservatório também não, então embora eu tenha os conhecimentos necessários para a profissão, eu não tenho uma carreira universitária, nem carreira, nem diploma. Então eu voltei a estudar no ano passado, mas com seis meses precisei trancar, porque a novela agora está me tomando tempo, e eu já vou emendar com outro trabalho muito bom que eu não quero deixar de fazer, mas eu vou terminar essa faculdade aos poucos.


Pergunta:

Sônia, você poderia descrever Santo André no momento que vocês chegaram, descrever a cidade, onde vocês moravam, as localidades?


Resposta:

Meu pai, durante a vida dele enquanto foi ferroviário, comprou um terreno nas imediações onde hoje é o Hospital Brasil, em Santo André, na Rua Tabaiares, e ele construiu uma casinha ali. Quando ele se aposentou, em Paranapiacaba, nós viemos de Paranapiacaba, nós mudamos para essa casa em Santo André. O Américo Brasiliense antes da construção era uma grande chácara, era uma chácara dos ingleses, que agora não estou lembrada o nome, mas lembro que era uma família inglesa que tinha uma casa muito bonita em frente ao Américo Brasiliense, não existe mais, tem prédios, era uma casa muito bonita. Ali eu cheguei a ver algumas vezes aquela atriz Sônia que era casada com um dos filhos dessa família, ou era parente dessa família, eu não lembro o nome agora. Depois foi construído o Paço Municipal, eu assisti à construção do Paço Municipal, do Teatro Municipal. No teatro eu andava por dentro da construção, porque foi o meu mestre, o senhor Chiarelli, que foi um dos fundadores do teatro do Rodhia, do teatro amador, primeiro grupo de teatro amador, e o senhor Chiarelli é que conseguiu que o prefeito Zampol incluísse nos planos do Paço Municipal o Teatro Municipal e eu ia junto, porque eu era apaixonada por teatro, e estava sempre aprendendo com ele, eu era assim a pupila do senhor Chiarelli, vivia junto para ver como era, vi quando começou, o palco era uma grande emoção. E fui eu também que tive a sorte de inaugurar, não sozinha, claro, mas com vários atores de Santo André, principalmente o Petrin, a Silvia Borges, o Taubaté, meu irmão Sérgio de Oliveira, Augusto Maciel – amigo Maciel, o próprio senhor Chiarelli trabalhou e alguns atores que vieram de São Paulo para completar o elenco, o Claudio Côrrea e Castro que veio do Rio, ainda mora no Rio, o Barreiros que trabalha aqui agora, e vários outros atores, João Antônio Nassau, que era de Santo André, da Associação dos Funcionários Públicos, Antônio Natal Poloni e Luzia Carmela, maravilhosa, que também já faleceu, então nós nos unimos, fizemos um grupo, o grupo já existia antes da inauguração do teatro, e esse grupo de Santo André que foi escolhido para inaugurar, foi uma montagem belíssima, nós usamos os dois palcos, não só o central, mas o lateral também, que é pouco usado, Osley Delamo que ainda mora em Santo André, o Amauri Álvares, vou me lembrando aos poucos, direção do Celso Nunes, foi uma estréia memorável essa peça Guerra dos Cansa Cavalos, que é dos Lins, que são de Pernambuco, família Lins de Pernambuco. Essa peça retrata a Guerra de Tróia, mas passada no Nordeste, duas facções inimigas, a noiva roubada que seria a Helena. É muito bonita a peça. Baseada na mitologia grega, a peça é passada em Pernambuco, é interessantíssima.


Pergunta:

Por volta de 1942, 1945, no período da Guerra, você tinha poucos anos. Você tem alguma lembrança que envolva algumas questões relacionadas à guerra, aos imigrantes que viveram aqui?


Resposta:

Sim. Nessa ocasião eu morava em Paranapiacaba que era um ponto chave porque era a ligação do porto de Santos com São Paulo, então nós tínhamos blackout, porque era muito perigoso e tinha-se medo que bombardeassem a estrada de ferro para impedir a passagem dos trens para Santos, porque de Santos saíam os barcos, os navios que levavam os suprimentos, o Brasil supriu muito os Estados Unidos com alimentos, o Brasil entrou na guerra com pouco elemento humano, tinha o batalhão da FAB, mas o principal auxílio do Brasil na guerra era o transporte de alimentos, então tínhamos medo de que os aviões chegassem a bombardear a estrada de ferro. Isso nunca aconteceu, mas a gente tinha blackout. Todas as janelas eram fechadas no entardecer. E tínhamos racionamento. Nós tivemos racionamento de farinha, o pão era horrível na ocasião da guerra, não tinha pão branco. E eu lembro quando a guerra terminou, eu pus a bandeira do Brasil na janela, todas as pessoas puseram a bandeira na janela, foi assim... Os japoneses principalmente foram muito prejudicados na ocasião, foram todos retirados do litoral, Itanhaém, Peruíbe, onde tinha colônias japonesas, eles tiveram de sair, ir para o interior, exatamente por esse problema do medo que eles servissem de contato e bombardeassem a estrada de ferro, o porto de Santos, a estrada, que eram os pontos chave dos suprimentos dos soldados americanos e dos aliados, não eram só os americanos. Mas, por exemplo, o meu avô era italiano, sofria muito, não ameaças físicas, mais verbais porque era tido como fascista, de Mussolini, porque os italianos eram considerados adeptos de Musssolini, o que não era verdade, uma pequena facção fascista, os outros italianos nem gostavam do Mussolini, e também estavam no Brasil há tanto tempo que não estavam mais ligados aos problemas da Itália. Quanto aos alemães, eu tinha uma amiga, minha comadre, madrinha da minha filha, isso já bem mais tarde, ela me contou também do sofrimento deles, que tiveram todos de sair, ela era enfermeira e o irmão dela era padre, e trabalhavam com os índios, trabalhavam com as populações ribeirinhas, trabalhavam em Mongaguá, todos tiveram de sair do Estado, até os padres tiveram de mudar, ele foi para São Paulo, para a Lapa, foi para o interior, mas não podiam ficar no litoral. Então foi uma perseguição mesmo, era uma maneira de se proteger, a idéia era proteção.


Pergunta:

Como a senhora começou a fazer teatro ?


Resposta:

Eu comecei na escola, naquele tempo a gente não tinha televisão, tinha só cinema, o rádio eu ouvia a rádio-teatro pela rádio São Paulo, tinha rádio-teatro, e eu ouvia desde pequena porque minha mãe gostava de ouvir, era sábado à tarde, não era encenado, mas tinha uma peça todo sábado, uma peça lida em forma de rádio-novela, e eu conhecia todo o teatro nacional através das leituras da rádio São Paulo, eles faziam textos teatrais não só nacionais, como estrangeiras também, conheci bastantes teatros quando menina. Não sabia se tinha valor ou não, eu conhecia os assuntos. E eu ouvia ópera à noite transmitida do teatro municipal também pela rádio. Eu tinha um avô português que era apaixonado por ópera e dele eu herdei esse hábito de ligar o rádio e ouvir ópera no domingo ou no sábado à noite também pelo rádio. E na escola era costume fazer festa de fim de ano, grandes festas de formatura, grandes festas, as professoras ensaiavam, as pessoas dançavam, cantavam no coral e a professora descobriu que eu tinha facilidade para cantar, eu cantei muito já, me formei depois de tudo, mas eu decobri no curso primário, e nessas festas eles começaram a me dar os papéis centrais dos testes da canções, eu era solista, e eu fui desenvolvendo; quando eu podia andar, eu passava temporadas sem andar, depois eu voltava para a escola fazia mais um ou dois anos e ficava mais um ano sem andar, foi assim até os quatorze anos. Mas durante esse tempo que eu estava lá, eu andava bem, não tinha problema, eu andava, dançava, tocava. Quando eu vim para Santo André, a primeira coisa que eu fiz foi estudar piano, porque lá em Paranapiacaba não tinha quem ensinasse e em Santo André primeiro eu aprendi piano particular, depois fui para o conservatório. Foi aí que fui descobri que era atriz.

Tem até um fato interessante. Eu fiz uma grande cirurgia aos quatorze anos, foi a última, porque eu fiz uma aos nove anos e houve um erro médico, infelizmente ninguém é culpado disso, tenho certeza que os médicos não erram por querer, isso acontece, então houve um erro e eu fiquei pior, dos nove aos quatorze anos eu fui piorando, tanto que aos quatorze anos eu não conseguia quase andar, então eu fiz uma grande cirurgia para corrigir o que houve aos nove anos. Talvez se eu tivesse feito logo em seguida não tivesse se agravado tanto, mas isso foi muito difícil porque eu fiquei com um pé bem menor, o que já não aconteceu com a minha filha, minha filha ficou perfeita, com a medicina mais moderna, ela não perdeu nem os movimentos, nada; eu não tenho movimentos no pé, o esquerdo ficou do tamanho de nove anos e depois não desenvolveu mais. E depois dessa cirurgia aos quatorze anos, eu já estava bem, já estava andando, o médico chamou meu pai e disse para ele assim: Olha, sua filha precisa estudar, ela não vai poder... Meu pai era operário, então era hábito, filho de operário era operário, sempre foi assim, em todas as sociedades, os filhos dos sapateiros são sapateiros, escolhe um, se tem vários, escolhe o que tem mais jeito, mas os filhos sempre seguem as profissões dos pais, eu digo na camada mais simples, mais pobre, é claro que nas outras camadas não. E então ele chamou meu pai e disse: Ela precisa estudar. Eu já estava na terceira série ginasial, mas então meu pai disse: Ela vai continuar estudando. E me perguntou: Então, minha filha, o que você vai ser quando crescer? Eu falei assim: Vou ser atriz. Meu pai falou assim: Atriz?! Mas de onde ela tirou essa idéia? Ela gosta de ler muito, ela lê toda peça de teatro. Então, me disse: Eu sinto te desiludir, mas com esse problema você não vai ser atriz não! É muito difícil, uma atriz precisa andar muito bem, ter as pernas perfeitas, precisa ser bonita. Eu falei: Não, eu vou ser atriz sim. Não tem importância! Eu falei: Porque na vida não tem gente que não enxerga, não tem gente que não ouve, não tem gente que não anda bem? No teatro também tem que ter, porque o teatro representa o que as pessoas são. Então se na vida tem gente defeituosa como eu, no teatro também tem que ter. E deu certo, felizmente. Para mim foi ótimo.


Pergunta:

Como a senhora entrou no teatro amador?


Resposta:

Eu trabalhei na escola, fiz papéis na escola, me formei. Quando eu terminei o curso normal, eu continuei fazendo também as formaturas do curso normal, também cantando, continuei a mesma coisa, ginásio, na escola normal, eu fiz a escola normal Padre Anchieta, em São Paulo, Instituto de Educação Padre Anchieta, depois eu fiz um curso de aperfeiçoamento e eu estava com quase vinte e um anos até terminar tudo, mas não tinha completado e o senhor Chiarelli, que era esse senhor de Santo André, eu fui conversar com ele porque eu sabia que ele tinha um grupo amador e fui conversar se eu podia trabalhar, ele falou assim: Você é maior de idade? Eu disse: Não. Ele disse: Então preciso do consentimento do seu pai. Eu fui falar com os meus pais e meus pais ficaram horrorizados. Disseram assim: Eu não criei filha para ser atriz! Naquele tempo atriz era sinônimo de mulher de má conduta [risos], eu falei: Mas eu quero ser atriz! Eu só fui ser professora porque meu pai falou assim: Primeiro você se forma e depois a gente vê o que você quer. Mas ele queria que eu me formasse primeiro, o que foi muito útil, porque a carreira de atriz antigamente, quando eu comecei era muito difícil, a gente não ganhava nada ou ganhava muito pouco, muito mais tarde é que eu pude sobreviver do teatro, muito mais tarde, a vida inteira eu trabalhei como professora. Conversei com meus pais e eles não deixaram. Eu fiquei muito triste, muito triste. Eu tinha uma amiga que tinha pai advogado, eu pedi para conversar com ele, conversei com ele, expliquei e ele me disse: Você precisa completar vinte e um anos para você poder resolver o que você quer da sua vida e precisa ter um emprego, precisa ganhar, precisa ser independente para tomar uma atitude dessas de querer ser atriz; você não pode resolver isso antes dos vinte e um anos. Então eu me formei, estudei para caramba, porque eu achava o curso normal muito chato e eu não queria ser professora, eu não estudava nada, o primeiro ano fui mal porque eu não estudava nada, fazia as provas sem estudar, não estava nada interessada. Quando ele me disse que eu precisava ter uma profissão, eu descobri que se eu me formasse em primeiro lugar, eu ganharia a famosa cadeira prêmio que existia antigamente – eu não sei se existe ainda hoje, mas quem se formava em primeiro lugar ganhava do governo o cargo de professor, ingressava na rede pública, no Estado, como professora, sem precisar ir para o interior, ingressava em São Paulo, Santo André, onde você escolhia, antes das outras, porque eram seleções por notas, por pontos, as professoras substituíam e a cada substituição ganhava um ponto e a soma desses pontos todos ia formando um número “x” para você poder escolher o lugar para lecionar, então todo mundo tinha que ir para o interior primeiro, para as fazendas, para depois chegar em São Paulo, mas quem ganhasse a cadeira prêmio escolhia antes das outras. E eu perguntei: Como se ganha a cadeira prêmio? Eles me disseram assim: Se formando em primeiro lugar. Eu falei: Eu perdi o primeiro ano, porque eu não estudei nada. Mas no segundo e no terceiro, eu estudei tremendamente e ganhei a cadeira prêmio, me formei com 9.9 não deu 10 mas deu 9.9, ganhei a cadeira, escolhi Santo André, escolhi o Grupo Escolar Santo André, na Vila Alpina, para poder ficar em São Paulo para poder fazer teatro. Eu tive muita ajuda na escolha da cadeira, quem me explicou tudo foi o senhor Martins que era o pai da Marília Martins, que era uma pessoa maravilhosa, dona Alice me ajudava, me ensinava a me vestir, me ensinava hábitos de higiene, me ensinava a me vestir melhor, eu andava muito mal-arrumada, não tinha noção, ela me ajudava... Dona Alice era ótima. Dava-me comida, me convidava para almoçar, convidava para chá e conversava muito comigo, dona Alice e senhor Martins. Devo muito a eles, eles foram maravilhosos para mim. E a Maria Tereza mais tarde também, pois foi muito minha amiga. Eu tenho uma ligação muito grande com essa família. Engraçado. Então eu escolhi a cadeira e tive uma conversa com o meu pai. Falei: Agora estou empregada, vou ser independente, agora eu quero fazer teatro, e eu já completei vinte e um anos. Ele disse: Não! Você não vai fazer teatro! Você se formou professora, você vai ser professora. Eu falei assim: Não! Eu vou ser professora, vou lecionar, mas eu vou fazer escola de arte dramática à noite. Ele disse: De jeito nenhum! Eu disse: Então, papai, eu vou sair de casa. Ele disse: Como? Eu vou morar em uma pensão – o que era um horror naquele tempo uma moça sair de casa solteira – eu vou morar em uma pensão e vou estudar teatro. Ele teve uma conversa com mamãe, e eles então concordaram que eu ficasse em casa, e ele me acompanhou a vida inteira a todos os ensaios, uma moça de família.

Eu conheci meu marido, casei, tive a filha, e só depois disso é que houve esse festival de teatro amador onde eu ganhei a bolsa do governo e fui fazer escola de arte dramática. Eu só consegui fazer a escola de arte dramática quando eu tinha trinta e dois anos. E muito interessante também porque tinha limite de idade, você não podia fazer escola depois dos trinta anos, só até trinta anos. Eu fui conversar com o Sr. Mesquita, e falei para ele: Eu esperei a vida inteira para conseguir fazer escola, o senhor tem que me deixar fazer a escola, não é porque eu passei da idade. Disse que eu tinha ganho esse prêmio. Ele falou: Realmente você ganhou o prêmio, você tem direito a fazer, mas existe uma prova, é um vestibular; você faça, se você passar nesse vestibular, eu reúno os professores, apresento o seu caso e vamos ver. Aí me dediquei para caramba e também passei em primeiro lugar no vestibular e concordaram que eu fizesse a escola. E foi assim, o mundo se abriu quando eu fiz escola de arte dramática, foi aí que eu tive acesso à história mesmo mais profunda. Foi aí que eu li a Ilíada, eu sabia a Ilíada de cor, me enterrei nas tragédias gregas, conheci Shakespeare. O mundo se abriu para mim quando fiz a escola de arte dramática. Por isso eu digo que o acesso à cultura, à instrução, é um bem que ninguém pode tirar da gente. Tenho grande pena quando eu vejo as crianças assim que não lêem, que ficam só paradas na frente da televisão, assim fechadinhas em um apartamento. Eu penso no mundo que existe nos livros e que você deixa de participar por não ter acesso. Então eu tenho me dedicado nos últimos anos a trabalhar com livros. Eu pus anúncios em vários lugares de que eu aceitava livros, eu e uma amiga, e nós já fizemos umas quatro, cinco bibliotecas em lugares diferentes. Mais ela do que eu. Eu recolho os livros e levo para minha casa de campo, nós passamos semanas arrumando, limpamos, encadernamos os que estão muito rasgados e até xerocamos folhas que estão faltando e completamos, fizemos uma biblioteca na escola de Ibiúna, agora a minha amiga Ana Maria Barreto fez uma biblioteca na ala feminina do Carandiru, onde foi extinta a parte masculina, mas a feminina ainda existe. E a Ana Maria colabora com a biblioteca do Carandiru. Eu moro agora em São Paulo e continuo recebendo. De vez em quando eu abro a porta e recebo uma caixa de livros. Eles sabem, eu distribuí no prédio todo, avisei todo mundo: não joguem nada fora, nenhum livro, nem usado, mesmo de escola, ponham na porta que eu distribuo. E eu levo para a casa do Zezinho, é uma casa que foi fundada por ex-professores da USP e tenho ajuda de muita gente. Meu trabalho agora fora do teatro é este: trabalhar com os livros, porque eu acho que existe um mundo a ser descoberto nos livros que as pessoas ignoram. Até li no Estado que existe um pedreiro também em São Paulo que achou uns livros e montou uma biblioteca em um bairro, maravilhosa essa história, e ele foi ingressando com as pessoas da favela. Começou assim: achou uns livros no lixo, começou a ler, aí que ele viu a beleza da leitura, foi aprendendo e foi indo cada vez mais... E tem uma fotografia dele assim numa sala cheia de livros. É isso.


Perguntas:

A senhora poderia detalhar mais, dar a sua impressão?


Resposta:

Eu não me detive porque existem vários livros do José Armando que contam muito isso, eu achei que não fosse necessário.

Durante minha vida toda eu tive muita sorte. O senhor Chiarelli, apesar de ser uma pessoa mais simples, tinha um grande amor pelo teatro, montou peças muito bonitas, com cenários muito bons. Eu trabalhei com gente muito boa, Nina Nery que ainda mora em Santo André e é uma ótima atriz; Alcides Montaner, pessoas da cidade mesmo, o próprio senhor Chiarelli que era ótimo ator, e lá eu conheci o meu marido, Aníbal Guedes, que também era um ator excepcional, fez a escola de arte dramática comigo e faleceu em seguida, nem deu tempo de fazer uma carreira, mas conheci também o Petrin, a Rosinha, trabalhei muito com eles, conheci a Márcia Vezzá, e outras pessoas que vieram de fora, como Celso Nunes, Silney Siqueira, Eneyda de Biasi, que foram grandes diretores, mas esses diretores que estou falando agora já foram dessa parte mais profissional, depois que eu já tinha feito a escola, mas antes, no tempo do senhor Chiarelli, nós fizemos muito teatro brasileiro, teatro antigo brasileiro, não o teatro clássico brasileiro, não; o teatro brasileiro mais popular, o teatro que se fazia no Rio de Janeiro, o teatro que a livraria Francisco Alves editava os textos, eram textos muito interessantes, pequenos. Quando você ia comprar na Livraria Francisco Alves... Não sei se alguém já contou isso para vocês, mas a Livraria Francisco Alves tinha uma seção de teatro dividida assim: uma dama, um cavalheiro; duas damas, um cavalheiro; uma dama e três cavalheiros; uma dama e quatro cavalheiros; um cavalheiro e duas damas; e era assim que você escolhia o texto, você nem sabia o nome das peças, você via lá: quantas pessoas tem no seu elenco? Eu tenho duas mulheres e dois homens, duas damas e dois cavalheiros, assim que estavam separados, era assim que escolhia as peças. E eu fiz esse tipo de teatro que era muito simples, mas que me deu uma grande experiência, porque eram peças realistas do teatro brasileiro antigo – antigo que eu digo é teatro de 20 até 40-45-50, esse tipo de teatro que eu fiz nesses quatorze anos – até que apareceu em Santo André o Chico de Assis que é um grande autor ainda vivo felizmente em São Paulo, o Chico de Assis fundou, no sindicato dos metalúrgicos, o centro popular de cultura que era um movimento comunista de esquerda como o movimento dos operários. Eu saí da sociedade de cultura artística e fui trabalhar com ele lá porque as peças que a sociedade de cultura artística montava já não me satisfaziam mais, que era esse tipo de teatro. Ele dizia assim: Mas é muito parecida, muito parecida. [risos] Pelo menos era sempre a mesma coisa que a gente fazia, mas me deu muita experiência, uma cancha, como a gente chama no teatro. Eu fui então para o CPC – centro popular, eu fiz a primeira peça Eles não usam blackie-tie que já era outro tipo de teatro, era um teatro de vanguarda brasileira. O Guarnieri foi um grande texto no teatro brasileiro nessa ocasião, e fiquei fazendo esse teatro no CPC e fazia teatro de rua também. Então a minha experiência foi essa, primeiro as peças mais simples, algumas brasileiras, algumas também estrangeiras, mas esse tipo de teatro de costumes, com a família, com a mãe e filho, os problemas familiares, os parentes que chegam, os vizinhos, esse tipo de teatro, até que fizemos também o Colégio Interno, onde eu ganhei esse prêmio com que eu entrei para a escola de arte dramática, foi com o Colégio Interno que foi um texto, parece-me que húngaro, era de Teódor o autor que é tio da Eva Todor – o nome da Eva é Teódor, como a pronúncia não é muito agradável em português, ela mudou para Todor – mas era o tio dela que era o autor dessa peça, que foi esse Colégio Interno que já era um avanço, já era um degrau acima desse teatro de costume que a gente fazia. E depois foi no CPC que eu conheci o teatro mesmo, daí já tinha a escola de arte dramática e passei a fazer uns textos melhores.


Pergunta:

O CPC foi na década de 60, na época da ditadura, quais os problemas enfrentados?


Resposta:

Problemas gravíssimos. Sofremos várias perseguições, tivemos que parar, o CPC foi fechado, acabou de repente. De repente acabou o CPC. Foi aí que o senhor Chiarelli me chamou para fazer o Colégio Interno, eu saí do CPC e fui fazer Colégio Interno, ganhei o prêmio e fiz a escola de arte dramática, mas o CPC era um teatro muito esquemático, era teatro de propaganda muito maniqueísta – os comunistas são bonzinhos e os outros todos são muito maus. E era a época, mas toda pessoa um pouco mais lúcida nessa ocasião era comunista, porque era a saída da ocasião, era a saída do momento, era aquela idéia de que a revolução iria acontecer e nós íamos ser muito felizes quando chegasse a revolução, o que não aconteceu no Brasil, mas o exemplo da Rússia serviu para você ver que não dá certo, você não pode igualar os homens de cima para baixo, não é assim que se resolvem as coisas. As coisas se resolvem com educação, saneamento básico, com cultura, mas não implantar de repente que todos são iguais, porque isso não existe, mesmo porque não são.


Pergunta:

E sobre sua participação no Grupo Teatro da Cidade?


Resposta:

Depois que nós saímos da escola de arte dramática... Aliás eu já fui para a escola com essa idéia. Eu falei para o meu marido: Olha, você veja que o tipo de teatro que a sociedade de cultura faz não interessa mais para nós; o CPC fechou; vamos para a escola de arte dramática, e quando nós sairmos, nós formaremos um grupo que mostre um teatro melhor para Santo André, vamos tentar. Primeiro fui eu e ele, fizemos o primeiro ano; quando nós estávamos na escola, o Ademar Guerra veio fazer uma peça em Santo André, foi a primeira peça em que o Petrin trabalhou com a Rosinha, em Santo André; eles trabalhavam em teatro de igreja e depois que eles foram fazer essa peça com o Ademar Guerra, eu e meu marido fomos assistir, e achamos que já era um passo a mais que se fazia em Santo André, e nós fomos conversar com ele. Ele perguntou: Por que vocês não fazem a escola de arte dramática? E o Petrin se interessou, o Osley Delano também se interessou e lá na escola, no ano seguinte, em vez de estar só eu e meu marido, estavam também o Petrin, o Osley Delano e foi aumentando, a Anali Alvares, já estávamos em cinco de Santo André. Nós conhecemos na escola Alexandre _____, outros atores como Antonio Natal Poloni que era _____ de Santo André e nós fundamos então o GTC quando terminamos a escola. Eu me formei antes, um ano antes deles, mas meu marido se formou com eles, meu marido perdeu um ano e acabou se formando com eles, então nós éramos cinco formados na escola. Conhecemos a Heleny Guariba que era ex-aluna do Plantion do teatro de Lion, na França, que se assemelhava a Santo André, tinha as características da cidade de Santo André, era uma cidade industrial perto de Paris, quer dizer, como Santo André uma cidade industrial perto de São Paulo, e nós simplesmente traduzimos o teatro La Citée, que era do Plation, nós fizemos o teatro da cidade, era o molde das casas de cultura, nós queríamos fazer a troca, queríamos tentar fazer um grupo de teatro em São Caetano, em São Bernardo, em Santo André, e começamos a trocar os grupos. Você ficava três meses aqui, três meses ali, três meses ali, e ia fazendo um circuito, um rodízio de teatro, era a nossa idéia; com quatro cidades já dava para fazer o rodízio, mas infelizmente a Heleny faleceu antes de concretizar isso porque ela tendeu para a luta armada e sumiu durante a repressão, ela sumiu, não foi encontrado nem o corpo dela, uma perda irreparável. Ela era um gênio teatral, uma mulher bonita, um gênio, inteligentíssima. E nós tivemos o apoio da Prefeitura de Santo André para montar a primeira peça que foi a de George Gandin. Depois que ela desapareceu, o Petrin foi eleito presidente e eu fui tesoureira e ficamos por mais dez anos. Nós fizemos inúmeros trabalhos. Eu acho, assim, pesando a minha carreira, que foi a parte mais importante teatral que eu fiz, eu já participei depois disso de inúmeras peças e com gente muito mais famosa do que nós éramos naquele tempo, mas o teatro melhor que nós fizemos eu acho foi aquele período, e o mais proveitoso, porque toda a nova geração de Santo André, os universitários, assistiam aos nossos espetáculos. Nós conseguimos formar uma platéia de teatro que antes não existia. A construção do teatro municipal e a criação da nossa companhia formou um pólo cultural, tanto que recebemos do governador do Estado um prêmio de descentralização da cultura, porque realmente foi o primeiro grupo profissional no Brasil fora de uma capital, era um plano de descentralização que deu certo. Então quanta gente eu encontro agora e fala: Eu vi tal peça, eu era menino, eu era estudante. Quer dizer, era isso que a gente queria. Naquele tempo também o acesso a São Paulo era muito restrito, agora em meia hora ou quarenta minutos você está em São Paulo com seu carro. Não existiam carros assim, a Volkswagen começou naquela época, e não havia carros brasileiros, os carros eram importados, caríssimos, então só as pessoas que tinham mais posses é que tinham carro e mesmo assim não era possível ir ao teatro, as famílias saíam com o carro no fim de semana; hoje, o estudante tem carro, dezoito, vinte anos, os jovens têm seu carro, eles compram a prestação ou o pai compra e dá de presente. É uma facilidade que não existia naquele tempo. A gente viajava de trem, eu fiz escola de arte dramática viajando quatro horas à noite de trem, ninguém tinha carro. Eu lembro que o primeiro carro que o Petrin comprou, um fusquinha, foi uma maravilha. Rosinha, Petrin, eu, meu marido e as crianças fomos para Santos, fazer a viagem inaugural do fusca. [risos] As condições eram muito diferentes, é difícil a gente explicar isso para vocês que não viveram nessa época. A gente conseguiu formar um pólo teatral em Santo André que não existia em nenhuma cidade do Brasil.


Pergunta:

Fale um pouco a respeito do teatro de alumínio.


Resposta:

A primeira peça que nós fizemos George Gandin, o teatro municipal ainda não estava construído, então George Dandin foi feito no teatro de alumínio. Era a sociedade de cultura artística em que eu trabalhava, o senhor Chiarelli, a diretoria comprou esse pavilhão, era um pavilhão feito de folhas, de caixotes da Volkswagen, aqueles caixotes em que a Volkswagen importava os carros, os carros primeiros eram montados aqui, as peças vinham da Alemanha, depois é que foram fazendo as peças no Brasil, mas antes vinham em caixas, e essas grandes caixas, eles, eu não participei disso, eu participei depois do teatro pronto, mas a construção eu sei que foi assim, era coberto de folhas de zinco, eles compravam um pavilhão em Mauá, um circo que foi à falência, compraram um circo em Mauá, um pavilhão, quando era circo era de lona, pavilhão era quando era de folhas, não era telha. Eles compraram e quando foram montar era tão feio que eles fizeram uma campanha e conseguiram esses caixotes, era um teatro feito de caixotes e forrado com as folhas. E quando chovia era terrível o barulho, você tinha que interromper o espetáculo porque não tinha forro. E funcionou muito tempo. Eu vi grandes espetáculos, veio Bibi Ferreira, Nicete Bruno e Paulo Goulart, atores bons que vinham fazer espetáculo nesse teatro, nesse teatro de alumínio. E eu fiz muitas peças infantis, eu fiz a Branca de Neve, Chapeuzinho Vermelho, a Bruxinha que era boa. Eu comecei na sociedade de cultura artística, na Júlio de Mesquita – Júlio de Mesquita era aquela escola industrial que tinha um teatro e a gente fazia lá, mas éramos sujeitos às leis e horários da escola, então era muito difícil para a gente se adaptar; a gente queria ensaiar até dez, onze horas, não podia, porque o guarda não deixava, nove horas tinha que ir embora, então não dava para ensaiar direito. Com esse teatro resolveu! A gente podia ensaiar até altas horas, porque altas horas era meia-noite, [risos] e todos os dias.


Pergunta:

E no teatro da cidade como era a questão de patrocínio, financiamento?


Resposta:

Para a primeira peça George Gandin, a Prefeitura de Santo André por meio da Secretaria de Cultura de Santo André nos deu uma pequena verba, na ocasião nós tivemos o cenário, os figurinos, tivemos um salário mínino para cada ator para podermos estrear. Quando a peça estreou, nós lançamos no Brasil, fomos nós que lançamos, mas não foi idéia nossa, foi idéia da Heleny que ela trouxe da França, o teatro na escola. As escolas não iam ao teatro, aí a Heleny preparou um grupo, a Dilma de Melo, que estudava na USP, preparou um grupo de professores de Santo André, de universitários da Fundação Santo André, eram sete moças que iam às escolas, falavam sobre o espetáculo e vendiam o espetáculo para a escola, vendiam bem mais barato, a R$1,00, o que seria hoje R$1,00, R$ 1,50, eram bem baratos, mas todo dia lotava, e aí nós dividíamos esse dinheiro entre os atores, e nós começamos a sobreviver. Cada vez mais, cada vez mais. Na segunda peça nós não precisamos mais de patrocínio, nós fomos economizando, eu era a tesoureira e a gente foi economizando e já teve dinheiro para montar a segunda peça, e assim foi indo porque lotava todos os dias. Todas as escolas de Santo André foram ver George Gandin porque não tinha censura, era uma peça simples do Molière, na realidade foi escolhida uma peça simplíssima, George Gandin é a peça mais simples que Molière escreveu. A gente escolheu um texto fácil porque estávamos formando o público, a idéia era muito clara para nós: tínhamos que pegar os estudantes e uma peça que eles entendessem, e após o espetáculo havia um debate com essa professora que ia nas escolas vender os espetáculos, essa professora ganhava uma porcentagem sobre o que ela tinha vendido e fazia o debate. Tinha uma coordenadora, Inajar Bevilácqua, que é a ex-esposa do José Armando, que coordenava junto com a Dilma de Melo, que estudava na USP. E por diversas vezes a gente conseguiu juntar professores, estudantes, alunos, teatro, música. Foi um movimento maravilhoso, cultural, na cidade. Para mim o período melhor da minha vida de teatro foi esse de dez anos em que eu trabalhei no Grupo Teatro da Cidade. Mas como tudo, depois de dez anos todo mundo já fazia teatro e vendia para a escola, o que se tornou uma prática comum e foi decaindo. Muitos atores mudaram para São Paulo, as pessoas foram se afastando, fomos diminuindo cada vez mais o número de atores e também estavámos muito cansados porque a responsabilidade minha e do Petrin era muito grande. Quando não tínhamos dinheiro, quando o dinheiro não era suficiente para a montagem, simplesmente nós íamos até um banco e levantávamos um empréstimo em nosso nome particular e pagávamos depois com o teatro, a gente conseguia pagar os empréstimos bancários, os juros não eram como agora, e se montava também com muito menos dinheiro. Agora eu vejo, por exemplo, uma página dupla no Diário, no Estado de São Paulo, a estréia de uma peça fica quase R$ 100.000,00. Nós durante todo o tempo que fizemos teatro nunca montamos uma peça que ficasse R$ 100.000,00, com cenário, figurino, não ficava em R$100.000,00; hoje, um anúncio no Estado de São Paulo, num domingo, numa página dupla fica quase isso, então é impossível, a mídia hoje esgota o dinheiro de uma produção, e se uma peça estréia sem a mídia, não vai ninguém ver, nem sabe que está passando; quando no tempo que nós fazíamos não existia essa mídia, a gente mandava as fotos da peça, existia uma página, não existia um caderno cultural, existia uma página, o Estado de São Paulo tinha um caderno literário, mas a página de cinema e teatro era uma folha do jornal, e nessa folha existia um roteiro com o nome do teatro e o nome da peça, então todas as pessoas que iam ao teatro olhavam o roteiro, ninguém ficava esperando ver a fotografia que ocupasse a página inteira e nenhum ator estava atrelado à televisão também. Hoje, com a televisão, os atores se sentem na necessidade de fazer televisão para mostrar seu trabalho e para poder levar o público ao teatro – uma coisa terrível isso, não é necessário, o teatro não tem nada a ver com televisão, é outra linguagem. E graças a Deus ainda existem atores como o Petrin e outros que fazem teatro independente da televisão, mas sofrem muito porque têm de ficar assim tentando patrocínio, pois se você não tiver patrocínio hoje, você não consegue montar um espetáculo. É muito caro.


Pergunta:

Independente do dinheiro, os recursos da produção eram de vocês mesmos? Tinha figurinista?


Resposta:

Não! A gente contratava figurinista, cenógrafo, eu era chefe da produção, eu me encarregava de dirigir a produção, então eu comprava tudo, pagava, tinha notas, prestava contas porque esse dinheiro todo tinha prestação de contas, e o Petrin se responsabilizava pelos cenários; a parte de cenário era dele, a parte de produção geral era minha. O José Armando depois ficou nosso sócio, como eu disse, nós ficamos tão sobrecarregados com os trabalhos que nós acabamos abandonando o grupo Teatro da Cidade e formamos uma firma que existe até hoje, que é a PROA – Produções Artísticas, que é o Petrin, o José Armando, o Portela de São Caetano e eu, e nós temos essa companhia até hoje. Ela não produz muito, o Petrin está produzindo agora por ela, também já produzi alguma coisa, o José Armando editou um livro por ela, é uma firma que existe, só que não tem o trabalho que tinha, não tem esse valor que tinha antigamente, a gente usa agora essa firma, mas ela não funciona o ano inteiro, funciona quando a gente precisa montar uma peça.


Pergunta:

Agora queria conversar um pouco sobre a questão da repressão, da censura. A gente estava conversando sobre o grupo Teatro da Cidade...


Resposta:

Nós não tivemos uma participação ativa, porque as greves eram comandadas pelos metalúrgicos, as reuniões eram dirigidas pelos próprios metalúrgicos, a gente ia assistir às reuniões, eu estava presente, fomos a várias, várias vezes. Participamos daquela campanha que fizeram de alimentos para socorrer os companheiros que estavam mais necessitados, disso tudo eu participei, conhecemos o Lula e os outros todos que comandavam na ocasião, que faziam discursos inflamados, a gente acompanhava porque o teatro nunca esteve totalmente separado da política. A política faz parte da sociedade, você não faz um teatro político, se você faz um teatro que mostra a sociedade, você já está fazendo um teatro político, não precisa ser engajado em partido, isso é outra coisa, mas o teatro sempre foi político, é só ele retratar uma parte da sociedade que ele já é político. Engajado é outra coisa, engajado era aquele teatro que a gente fazia no CPC, aquele sim era teatro de esquerda didático, radical. O teatro do nosso grupo não era radical, mas era um grupo engajado politicamente, então fizeram parte da história do Brasil aquelas greves da Volkswagen e nós estávamos presentes naquele momento. É isso, mas não éramos dirigentes, absolutamente, e nem os operários aceitavam; os operários é que lideraram o movimento, fizeram, lideraram, levaram adiante e formaram o PT, o PT é partido do trabalhador. Depois eu me filiei, mas isso muito depois. Aliás não me filiei, eu sempre trabalhei no partido, mas não sou filiada, eu sempre erro a palavra, eu sempre trabalhei, não sou filiada, mas eu trabalhei bastante no partido, sempre. Agora também, acho obrigação a participação, seja lá o partido que for, porque é a escolha da pessoa, depende das opiniões das pessoas, no que elas acreditam, no que elas confiam, no que elas querem. E o nosso grupo, Grupo Teatro da Cidade, nunca montou uma peça partidária, mas sempre de denúncia contra os abusos, principalmente os abusos da ditadura. Nós sofremos uma censura no grupo Teatro da Cidade quando fomos montar uma peça que chamava A heróica pancada, que era sobre a Revolução de 32, baseada na música que os estudantes de direito cantavam:

Quando se sente bater no peito a heróica pancada,

Deixa-se a folha dobrada enquanto se vai morrer ...

Os estudantes da São Francisco cantavam durante a Revolução de 32, então o autor fala a heróica pancada. E isso montado durante a ditadura era impossível, então a censura proibiu, não censurou, proibiu a montagem, o que é muito mais. A censura cortava algumas partes, a nossa peça não foi censurada, foi proibida, era do Carlos Queirós Teles. Então como nós já tínhamos o grupo todo reunido para fazer a peça e não pudemos fazer, nós resolvemos fazer uma peça infantil, que chamava assim Nem tudo está azul, no país azul, que de infantil não tinha absolutamente nada, mas a censura burra, como sempre foi, não percebeu e nós montamos então Nem tudo está azul, no país azul e falávamos tudo que a gente queria falar através de metáforas.


Pergunta:

O público era infantil?


Resposta:

O público infantil percebia a historinha infantil, porque tinha uma historinha que as crianças acompanhavam, e o que estava por trás os adultos assistiam. E nesse tempo também nós montamos O incidente no 113 que era uma peça que se passava no elevador, que não tinha fim, a gente apertava o cento e treze, cento e quatorze, quinze não tinha fim, era um prédio que não tinha fim, e tudo acontecia nesse elevador que era a própria vida, o próprio sistema político, o governo, o elevador era tudo isso, e que também a censura não viu nada e deixou a gente montar, que foi a nossa resposta à censura das nossas peças O incidente no 113 e Nem tudo está azul, no país azul, mas A heróica pancada foi proibida. Eu fui interrogada, felizmente não fui torturada, só fui interrogada, porque eu levei o grupo de Santo André, que a Márcia deve ter contado para vocês, no festival da Colômbia, eu fui a chefe do grupo, e dentro do nosso grupo, quando nós saímos do Brasil, tinha um rapaz que tinha o mesmo nome de uma pessoa que estava sendo procurada pela polícia, mas quando nós fomos sair do país a Polícia Federal segurou ele e a mim porque era a chefe do grupo, e nós apresentamos o documento, ele disse: Olha, não sou eu. Ele era funcionário do Banespa de Santo André, não tinha nenhuma ligação política, e a polícia viu que era só um suspeito, mas realmente não era ele, e eles disseram: Vocês podem ir para a Colômbia, quando vocês voltarem, vocês se apresentam outra vez. O autor da peça, César Vieira, estava preso quando fomos apresentar essa peça na Colômbia, era um advogado que libertava presos políticos, ele libertou tantos até ser preso também, mas aí como era um festival na América Latina e ficava muito mal a peça dele ser escolhida para representar o Brasil e ele preso, ele conseguiu, o advogado dele conseguiu que ele fosse libertado para acompanhar o grupo, para não ficar tão mal para o Brasil, senão poderia falar que o Brasil prende até os autores das peças, então ele foi junto conosco e depois voltou, quando ele voltou, não o prenderam mais, ele ficou em liberdade condicional, ficou em casa, não precisou ficar mais preso. Essa peça que nós fizemos, quando nós chegamos lá na Colômbia, era um movimento de teatro castelhano e só nós é que falávamos português e tinha um outro grupo que estava no festival internacional, era feito na América Latina, mas era internacional, tinha um grupo da Tchecoslováquia; foi muito proveitoso, nós vimos que o teatro brasileiro sempre esteve muito bom, impressionante isso, assim em um país... Talvez até por isso, com tanta diversidade cultural, consegue ter atores tão bons. Os atores brasileiros são muito criativos. Nós não temos muita cultura de base, mas nós sabemos resolver os problemas em cena. Sempre é o jeitinho brasileiro que funciona no teatro, funciona mesmo. Nós éramos aplaudidíssimos, era um espetáculo vibrante, as pessoas adoravam esse espetáculo. Foi muito bom!


Pergunta:

Nesse espetáculo de Manizales, qual é sua lembrança do dia de estréia? A Márcia contou que houve um mal-estar.


Resposta:

Foi. Quando nós viajamos, no próprio avião que nós fomos para lá, eles nos olhavam muito assim: Olha os imperialistas! Eles nos consideravam imperialistas, por causa da ditadura. A ditadura estava muito ligada aos Estados Unidos, à Cia. Depois isso foi provado, eram só suspeitas, mas depois houve provas disso. Então eles pensavam que nós éramos assim... Por que o governo deixou vocês saírem assim? Então vocês devem ser a favor do governo. Mas depois que a peça foi para estréia... Antes a gente era olhado com desdém, muito de cima. Depois que eles viram a peça, eles entenderam que a nossa maneira de reagir era montar os textos. E a platéia entendeu perfeitamente, fomos muito aplaudidos. Acho que o melhor espetáculo do festival foi o nosso. Existiam trabalhos do ponto de vista didático, trabalho de ator muito interessante, o Buena Ventura, se não me engano, estava na Colômbia. Henrique Buena Ventura acho que era colombiano, ele tinha um trabalho de ator muito diferente do que a gente estava acostumado. Ele reunia os atores e improvisava, ele ia improvisando, improvisando texto e a esposa do Buena Ventura, que era uma francesa, ela era taquígrafa e escrevia tudo o que os atores falavam, depois eles se reuniam e discutiam aqueles textos, depois ela passava, ela taquigrafava e depois passava para as pessoas entenderem, para a gente se lembrar o que a gente tinha falado e com base nesses textos. Ele fez um método, esse método eu trouxe para o Brasil e traduzi, eu não publiquei porque eu não tinha a autorização dele para publicar, mas eu traduzi e distribuí para vários grupos estudarem esse método. Aqui no Brasil não se fazia isso, hoje é muito comum isso, todo grupo faz isso, os grupos têm textos próprios, vão improvisando, depois vão escrevendo essas improvisações, depois vão tirando o excesso e acabam ficando com o texto, o texto é de todos, o que se chama de criação coletiva, mas na ocasião não, isso para nós foi uma surpresa, a gente sempre necessitava de um autor que escrevesse o texto. Ele escrevia seu próprio texto, o Buena Ventura depois ensaiava, os espetáculos eram maravilhosos porque eram muito naturais, eram muito expressivos porque era o que as pessoas tinham falado realmente, não foi ninguém que ditou a elas, elas falaram o que sentiram no momento. Essa foi a nossa experiência internacional. [risos] Foi uma experiência também do ponto de vista social muito interessante, porque nós não tivemos apoio, eu não consegui apoio de ninguém, eu fui a todas as entidades, a todas as repartições do governo. Não ajudaram. Eu comprei as passagens em prestações, e cada ator pagava uma parte depois para a gente poder pagar as prestações, e no final de dois anos, quando acabavam as prestações, nós ganhamos um prêmio com uma outra peça e com esse prêmio em dinheiro, nós saldamos a dívida das passagens, não ficamos devendo nada, mas foi muito difícil para a gente. Então nós não tínhamos dinheiro quando chegamos lá, porque o festival não pagava nada, a bilheteria do festival era para o próprio festival, o festival deu casa e comida para todos, então o que a peça vendia era para poder pagar o que estávamos gastando lá. Nós fomos convidados depois para ir para a capital fazer a peça e lá deu um relativo dinheiro, nós pegamos um empresário terrível que ficou com tudo que nós ganhamos, mas conseguimos que ele nos pagasse ao menos a passagem e fomos para uma outra cidade, Cali, na Colômbia, onde estava o teatro Buena Ventura. Buena Ventura ficou encantado com o nosso trabalho. Nós fomos para Cali e ficamos hospedados no próprio teatro, tinha lugar para ficarmos, não era hotel, nós ficamos lá, e as entradas eram centavos, cinqüenta centavos do dinheiro da Colômbia que já não era nada, o que seria uns dez centavos para nós, mas lotava, as pessoas apinhavam, não tinha mais onde entrar gente. Quando acabava a sessão, eles nos davam todo aquele dinheiro assim, moedinhas, o Buena Ventura tomava conta de tudo, ele dava toda aquela dinheiranha para mim, e a gente saía dali, eu, a Márcia e uma outra atriz, que era a primeira esposa do Secretário de Cultura de Santo André, Celso Frateschi, Denise, a Rosinha foi conosco e me ajudou demais, nós comprávamos pão, leite, fazíamos lanche para todo o elenco de noite, após o espetáculo, e no dia seguinte com o resto daquele dinheiro nós fazíamos um almoço. Quer dizer, nós tínhamos como comer: dormíamos no teatro e comíamos o que dava na sessão, se dava mais, a gente comprava mais comida; se dava menos, comprava menos; e as nossas comidas ficaram famosas na cidade e começou a aparecer gente para participar do nosso almoço, atores desempregados, pessoas começavam a chegar. Eu falava: Gente! O que nós fazemos? Está chegando mais gente! Virou um almoço coletivo. [risos] Mas a experiência foi maravilhosa, nós sobrevivemos com tudo isso e ainda conseguimos dinheiro para alugar um outro ônibus para nos levar para a capital para voltarmos para o Brasil. [risos]


Pergunta:

Isso prova que nem sempre sai tudo perfeito?


Resposta:

Isso acontece sempre em todo espetáculo, seja profissional, seja amador, seja na televisão. Eu fiz televisão bem mais tarde, também na televisão acontece muito imprevisto, na televisão é mais fácil, se o erro é muito grande pára a gravação e grava outra vez, no teatro já várias vezes aconteceu. Eu fiz a Pérola, a peça de maior sucesso que eu já fiz até hoje durante quatro anos, com Mauro Rasi – meu querido amigo que faleceu em abril, aos cinqüenta e poucos anos, de câncer – e com essa peça ficamos quatro anos em cartaz. No final de quatro anos, eu comecei a esquecer o texto, toda noite, eu não sabia mais o que tinha que falar. Se fosse no começo, você diria assim: Ah! Não estudou direito o texto, não está firme, mas depois de quatro anos, aí é que começou falhar o texto. A coisa chegou a tal ponto que no final eu pedi substituição, eu não conseguia mais fazer, acho que fiz tanto, tanto, tanto que minha memória queria se livrar desse texto, eu não lembrava mais. É impressionante isso quando acontece. Geralmente a gente alia, como já dizia o Shakespeare, eu comentei no carro com as meninas, o Shakespeare na cena de Hamlet, quando entram os atores, ele convida um grupo de atores para fazer uma representação para o tio dele que matou o pai dele, então ele faz uma representação porque ele acha que matou o pai, e era verdade, então quando o tio vê aquela cen


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